sábado, 17 de outubro de 2009

Fascismo de Esquerda


O polemista conservador americano Jonah Goldberg
cansou de ser insultado pela esquerda de seu
país – e devolve a provocação em um livro do qual
todos os ídolos democratas saem chamuscados


Nelson Ascher


Em 1923, o jornalista Isaac F. Marcosson escreveu no New York Times, em tom de admiração, que "Mussolini é o Roosevelt latino que primeiro age e só depois procura saber se é legal. Ele tem sido de grande ajuda para a Itália".4 A Legião Americana, que, durante quase toda a sua história, tem se destacado por ser uma grande e generosa instituição, foi fundada no mesmo ano em que Mussolini tomou o poder, e, em seus primeiros tempos, buscou inspiração no movimento fascista italiano. "Não se esqueçam", declarou naquele ano o comandante nacional da Legião, "de que os membros do Partido Fascista são para a Itália o que a Legião Americana é para os Estados Unidos."5

Em 1926, o humorista americano Will Rogers visitou a Itália e entrevistou Mussolini. Ele disse ao New York Times que Mussolini era "um tipo de carcamano". "Eu estou muito entusiasmado com essa figura." Rogers, a quem o National Press Club havia informalmente apelidado de "embaixador itinerante dos Estados Unidos", escreveu a reportagem para o Saturday Evening Post. Ele concluiu: "O governo ditatorial é a melhor forma de governo que existe: quer dizer, desde que você tenha o ditador certo."6 Em 1927, o editor do Literary Digest fez uma pesquisa perguntando: "Existe escassez de grandes homens?" Dentre os grandes homens apontados para refutar a pergunta, o mais votado foi Benito Mussolini - seguido de Lenin, Edison, Marconi e Orville Wright (um dos inventores do avião), com Henry Ford e George Bernard Shaw empatados em sexto lugar. Em 1928, o Saturday Evening Post glorificou ainda mais Mussolini, publicando uma autobiografia do Duce em oito capítulos. A série recebeu um acabamento especial e virou um livro que entrou para a história como um dos maiores adiantamentos já pagos a um editor americano.

E por que não haveria o americano médio de pensar que Mussolini era um grande homem? Winston Churchill o havia chamado de o maior legislador vivo do mundo. Sigmund Freud enviou a Mussolini uma cópia de um livro que escrevera junto com Albert Einstein, com a dedicatória "Para Benito Mussolini, de um velho que saúda o Governante, o Herói da Cultura". Os titãs da ópera, Giacomo Puccini e Arturo Toscanini, estavam entre os primeiros acólitos fascistas de Mussolini. Toscanini foi um dos primeiros membros do círculo do Partido Fascista de Milão, que conferia a seus integrantes uma aura de autoridade e precedência semelhante à dos membros do Partido Nazista nos tempos do Putsch da Cervejaria. Toscanini foi candidato ao parlamento italiano numa chapa fascista em 1919 e só foi repudiar o fascismo 12 anos depois.7

Mussolini era um herói especial dos muckrakers - aqueles jornalistas liberais progressistas dedicados a denunciar corrupções e escândalos e a defender os interesses do homem comum. Quando Ida Tarbell, a famosa repórter cujo trabalho ajudou a derrubar a Standard Oil, foi enviada à Itália em 1926 pela revista McCall's para escrever uma série sobre a nação fascista, o Departamento de Estado dos Estados Unidos temeu que aquela "radical bastante vermelha" pudesse escrever apenas "violentos artigos anti- Mussolini". Tais receios eram infundados. Ida foi cortejada pelo homem que ela chamou de "um déspota com covinhas" e louvou sua atitude progressista com relação aos trabalhadores. Igualmente atraído ficou Lincoln Steffens, outro famoso muckraker, que talvez seja vagamente lembrado nos dias de hoje como o homem que retornou da União Soviética declarando: "Estive no futuro, e funciona." Pouco depois daquela declaração, ele fez outra a respeito de Mussolini: Deus havia "criado Mussolini a partir de uma costela da Itália". Conforme veremos, Steffens não via nenhuma contradição entre seu gosto pelo fascismo e sua admiração pela União Soviética. Até Samuel McClure, o fundador do McClure's Magazine, o lar de tantos muckrakers famosos, apoiou o fascismo depois de visitar a Itália. Ele o saudou como "um grande passo adiante e o primeiro novo ideal de governo desde a fundação da República americana".8

Enquanto isso, quase todos os jovens intelectuais e artistas italianos mais famosos e admirados eram fascistas ou simpatizantes (a mais notável exceção foi o crítico literário Benedetto Croce). Giovanni Papini, o "pragmático mágico" tão admirado por William James, estava profundamente envolvido nos vários movimentos intelectuais que criaram o fascismo. Seu A história de Cristo - um tour de force turbulento, quase histérico, relatando sua aceitação do cristianismo - causou sensação nos Estados Unidos no início da década de 1920. Giuseppe Prezzolini, frequente colaborador do New Republic que um dia haveria de se tornar um respeitado professor na Universidade de Colúmbia, foi um dos primeiros arquitetos literários e ideológicos do fascismo. F. T. Marinetti, o fundador do movimento Futurista - que na América era visto como um companheiro artístico do Cubismo e do Expressionismo -, foi instrumental para fazer do fascismo italiano o primeiro "movimento jovem" bem-sucedido do mundo. O establishment educacional americano estava profundamente interessado nos avanços da Itália sob o notável "mestre-escola" Benito Mussolini - que, de fato, havia sido professor.

Talvez nenhuma instituição de elite na América tenha se acomodado ao fascismo tanto quanto a Universidade de Colúmbia. Em 1926, ela criou a Casa Italiana, um centro de estudos da cultura italiana e cenário para palestras de acadêmicos italianos preeminentes. Era a "genuína casa do fascismo na América" e uma "escola para os ideólogos fascistas que despontavam", de acordo com John Patrick Diggins. O próprio Mussolini havia contribuído com alguns móveis barrocos para a Casa Italiana e enviado ao presidente da universidade, Nicholas Murray Butler, uma foto autografada agradecendo sua "grande e valiosa contribuição" para a promoção do entendimento entre a Itália fascista e os Estados Unidos.9 Butler, pessoalmente, não era um defensor do fascismo para a América, mas acreditava que estava de acordo com os melhores interesses do povo italiano e que havia sido um sucesso muito real que merecia ser estudado. Essa distinção sutil - o fascismo é bom para os italianos, mas talvez não o seja para a América - era feita por uma grande variedade de destacados intelectuais liberais, posição muito parecida com a de alguns liberais que defendem o "experimento" comunista de Fidel Castro.


Veja, para assinantes

Trecho de Fascismo de Esquerda,
de Jonah Goldberg

1
Mussolini:
o pai do fascismo

Você é o máximo!
Você é o Grande Houdini!
Você é o máximo!
Você é Mussolini!
- Versão anterior da música de Cole Porter "You're the top"1

Se alguém se guiasse somente pelo que lê no New York Times ou no New York Review of Books, ou pelo que aprendeu com Hollywood, seria perdoado por pensar que Benito Mussolini chegou ao poder mais ou menos na mesma época que Adolf Hitler - ou até um pouco mais tarde - e que o fascismo italiano era meramente uma versão tardia, aguada, do nazismo. A Alemanha aprovou suas odiosas políticas raciais - as Leis de Nuremberg - em 1935, e a Itália de Mussolini a seguiu em 1938. Os judeus alemães foram levados para campos de concentração em 1942, e os judeus na Itália foram levados para campos de concentração em 1943. São poucos os escritores que mencionam casualmente, entre parênteses, que, até a Itália aprovar suas leis raciais, na realidade havia judeus trabalhando no governo italiano e no Partido Fascista. E, de tempos em tempos, pode-se encontrar uma concordância com a exatidão histórica quando alguém indica que os judeus só foram aprisionados depois que os nazistas invadiram o norte da Itália e criaram um governo títere em Saló. Mas, em geral, tais fatos inconvenientes são postos de lado o mais rapidamente possível. O mais provável é que nossa compreensão dessas questões venha de filmes de sucesso como A vida é bela,2 que pode ser resumido assim: o fascismo chegou à Itália e, poucos meses depois, chegaram os nazistas, que amontoaram os judeus em vagões e os levaram embora. Quanto a Mussolini, era um ditador bombástico, com aparência ridícula, mas altamente eficiente, que fez com que os trens passassem a andar no horário.

Tudo isso significa passar o filme de trás para frente. À época em que a Itália relutantemente aprovou suas vergonhosas leis raciais - que foram postas em prática com um grau de barbaridade nem de longe parecido com o exibido pelos nazistas -, já haviam transcorrido mais de três quartas partes do reinado do fascismo italiano. Dezesseis anos se passaram entre a Marcha sobre Roma e a aprovação das leis raciais italianas. Começar com os judeus quando se fala de Mussolini é o mesmo que começar pelo confinamento dos japoneses ao falar de FDR: boa parte da história é deixada para trás. Durante toda a década de 1920 e na maior parte da seguinte, fascismo significou algo muito diferente de Auschwitz e Nuremberg. Antes de Hitler, de fato, nunca ocorrera a ninguém que o fascismo tivesse alguma coisa a ver com antissemitismo. A rigor, Mussolini era apoiado não apenas pelo principal rabi de Roma, mas por uma parte substancial da comunidade judaica italiana (e da comunidade judaica mundial também). Além disso, os judeus estavam super-representados no movimento fascista italiano desde a sua fundação, em 1919, até serem expulsos, em 1938.

Questões raciais de fato ajudaram a mudar o rumo da opinião pública americana a respeito do fascismo. Mas isso não tinha nada a ver com os judeus. Quando Mussolini invadiu a Etiópia, os americanos finalmente começaram a se voltar contra ele. Em 1934, a canção de sucesso de Cole Porter "You're the top" não provocou nem ao menos uma palavra de controvérsia a respeito do verso: "Você é Mussolini!" Quando Mussolini invadiu aquele pobre, mas nobre, reino africano no ano seguinte, isso danificou sua imagem irremediavelmente, e os americanos decidiram que já tinham visto o bastante. Aquela era a primeira guerra de conquista empreendida por uma nação europeia ocidental depois de mais de uma década, e os americanos ficaram claramente insatisfeitos, especialmente os liberais e os negros. Ainda assim, foi um processo lento. O Chicago Tribune inicialmente apoiou a invasão, bem como repórteres como Herbert Matthews. Outros afirmaram que seria hipocrisia condená-la. O New Republic - que estava no auge de sua fase pró-soviética - acreditava que seria "ingênuo" responsabilizar Mussolini quando o verdadeiro culpado era o capitalismo internacional. E não foram poucos os americanos preeminentes que continuaram a apoiá-lo, embora discretamente. O poeta Wallace Stevens, por exemplo, continuou pró-fascista. "Eu sou pró- Mussolini, pessoalmente", escreveu a um amigo. "Os italianos", explicou, "têm tanto direito de tomar a Etiópia dos crioulos quanto tinham os crioulos de tomá-la das jiboias constritoras."3 Mas, com o tempo, principalmente devido à sua subsequente aliança com Hitler, a imagem de Mussolini ficou cada vez mais desgastada.

Isso não significa dizer que ele não tenha levado vantagens.

O que é (ou foi) o fascismo?


Pode-se facilmente identificar quais países, regimes e movimentos, entre as duas guerras mundiais, eram fascistas, com a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler à frente. E sabe-se que, em linhas gerais, todos compartilhavam nacionalismo, anticomunismo, autoritarismo, o culto ao líder, a mobilização das massas, um apego à violência, a demonização de inimigos reais ou imaginários. Aqui termina o acordo entre eruditos, começam as interpretações, e se entra numa esfera distinta, na qual "fascista" deixou há muito de ser uma palavra para se converter em palavrão. Poucos se abstêm de usá-lo para dizer que discordam ou não gostam de algo ou de alguém – mas, como açoite verbal, o termo pertence sobretudo à esquerda. Fascismo de Esquerda (tradução de Maria Lucia de Oliveira; Record; 546 páginas; 59,90 reais), do ensaísta americano Jonah Goldberg, uma das jovens estrelas que se agrupam em torno da revista National Review – veículo do vilanizado neoconservadorismo americano –, retruca à esquerda dos Estados Unidos, que vilipendia os conservadores acusando-os de fascistas. Goldberg devolve a acusação, tentando provar, menos por argumentação que por acúmulo de convergências e coincidências factuais, que, ao fim e ao cabo, "fascistas são vocês".

Por alentada que seja, a obra não é nem um apanhado teórico, nem uma investigação histórica. Trata-se antes de uma polêmica popular, o que torna relevante seu contexto. Ela é uma intervenção no longo e aguerrido debate americano entre liberais e conservadores, orientações políticas que, entre nós, equivaleriam, grosso modo, a centro-esquerda e centro-direita. Livre para rotular, Goldberg segue a lógica do insulto até cair, amiúde, no ridículo. Assim, que a Revolução Francesa tenha sido violenta e homicida, não basta, como quer o autor, para caracterizá-la anacronicamente como pecado original e raiz do fascismo. No entanto, se o polemista neoconservador não consegue (como os liberais ou esquerdistas tampouco) aproximar seus adversários decisivamente dos antigos camisas-negras ou estabelecer entre ambos um verdadeiro vínculo genético, nem por isso deixa de arrolar semelhanças e parentescos no mínimo intrigantes e, no limite, desagradáveis.

Não é mistério que, em seus extremos nazista e stalinista, direita e esquerda se assemelhavam mais entre si do que a qualquer forma de democracia civilizada. Goldberg, contudo, ao explorar cerca de um século de "progressivismo" e liberalismo americanos, revela que estes nem sempre estiveram do lado do bem. Do nacionalismo chauvinista ao expansionismo imperial, da eugenia ao racismo, da xenofobia ao antissemitismo, quase tudo o que se atribui à direita foi, em algum momento, testado ou adotado pela esquerda americana, cujos heróis e paladinos saem, se não desmoralizados, decerto chamuscados. Dos quatro grandes presidentes democratas, Woodrow Wilson (que interveio na I Guerra e idealizou a Liga das Nações), Franklin Roosevelt (pai do New Deal e pilar da aliança que, na guerra seguinte, derrotou o Eixo), John Kennedy e Lyndon Johnson (cujas administrações acabaram com a segregação racial), nenhum emerge incólume de Fascismo de Esquerda. Embora seus governos não tenham sido fascistas, Goldberg mostra que eles comportavam elementos do fascismo.

O New Deal rooseveltiano, economicamente menos eficaz do que a lenda declara, envolveu uma mobilização de cima para baixo da população que, encorajada pela propaganda de slogans marciais nos novos meios de comunicação de massa (rádio e cinema), apresentava semelhanças preocupantes com o que ocorria então na Itália, Alemanha e União Soviética. Kennedy, por seu turno, valeu-se pioneiramente da televisão para projetar uma imagem quase monárquica de sua personalidade e gestão. Seu assassinato contribuiu para mitificá-lo como mártir da causa liberal. Que os ídolos republicanos sejam poupados por Goldberg de tão severo exame é da natureza da polêmica. Há nela, porém, informações úteis sobre a mais estereotipada das nações, os Estados Unidos. Publicado antes da eleição de Barack Obama, o livro ajuda a acompanhar com ceticismo a ascensão, atípica em democracias maduras e pragmáticas, de um dirigente messiânico e, de antemão, anunciado como redentor do passado, reconciliador das raças, salvador da pátria. Embora se possa e, em muitas questões, se deva tomar a obra com boas pitadas de sal, não há como ignorar a pertinência de suas melhores provocações.

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