domingo, 23 de agosto de 2009

Crise no Senado ajuda PMDB dos grotões a enterrar herança de Ulysses


Maurício Savarese
Do UOL Notícias
Em São Paulo

"Respeitem o líder da oposição!", gritou Ulysses Guimarães (1916-1992) quando, em Salvador, a polícia e seus cães se colocaram diante dele, presidente do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), e de um grupo que rumava à sede regional do partido. Era 1978 e o governo ditatorial proibia concentrações públicas.

Anos depois, a democracia retornou. Mas aquela postura desafiadora do "Senhor Diretas" foi dando espaço ao hábito do governismo, que traçou na atual crise do Senado uma linha quase definitiva para separar os militantes históricos dos novos peemedebistas.

Antigos líderes, como Pedro Simon (RS) e Jarbas Vasconcellos(PE), se esgoelaram para pedir a saída do colega de partido, José Sarney (AP), da presidência do Senado. Acabou desdenhado pelo ex-presidente da República e pelo líder do PMDB na Casa, seu rival mais jovem Renan Calheiros (AL). Interlocutores do mais antigo parlamentar da sigla, o deputado Mauro Benevides (CE), lamentam o fato de ele raramente ser ouvido para discutir os rumos do partido.

"Eu ainda resisto porque tenho de honrar a memória de Ulysses, de Tancredo Neves e de tantos outros que representam o espírito do MDB", disse o senador Simon ao UOL Notícias. "Mas vejo que quando eu morrer, quando o Jarbas Vasconcelos morrer, o PMDB vai ficar ainda mais distante de qualquer coerência histórica. Hoje o partido quer administrar muitas cidades, muitos Estados, mas ele não tem projeto de administrar o país. Quer seguir governando, acendendo vela para um lado e para o outro. Ainda bem que o Ulysses não está aqui para ver o que fizeram com o legado dele."

Enquanto isso, figuras novas como os senadores Wellington Salgado (MG) e Almeida Lima (SE) ganham espaço por fazerem o papel de "tropa de choque governista", em especial na defesa de Sarney, pressionado por quase todos os outros partidos a deixar o cargo após uma série de denúncias. Esses são parlamentares que tiveram pouca ou nenhuma convivência com Ulysses e seus colegas da "Manda Brasa", como era chamado o partido durante a luta pela redemocratização do Brasil.

"Governismo une o PMDB"
Se durante os anos de chumbo o PMDB tinha o monopólio da oposição oficial - já que a ditadura colocou os outros na clandestinidade-, com a redemocratização o seu monopólio do governismo tem estimulado a baixa fidelidade partidária. "São dois partidos diferentes, um antes e outro depois da democracia", diz o presidente do PPS, Roberto Freire. "Quando estive no PMDB fiquei com figuras como Leonel Brizola, Fernando Henrique, José Serra, Tancredo. Discordávamos muitas vezes, mas a luta contra a ditadura nos unia. Hoje o governismo une o PMDB."

Apenas no Senado, onde a atual crise se desenvolveu, estão o líder do governo Lula, Romero Jucá (RR), ex-PSDB e ex-PFL; Renan Calheiros, que é um dos fundadores do partido tucano, e Sarney, ex-presidente do PDS, que sucedeu a Arena na sustentação ao Regime Militar. O senador Leomar Quintanilha (TO), articulador de bastidores, já foi do PDS, do PCdoB e agora é peemedebista. Nenhum deles foi encontrado para fazer comentários sobre o assunto.

Federação de lideranças regionais
"Até a Constituição de 1988, o PMDB era uma federação de lideranças políticas históricas, democráticas, à esquerda e sob a liderança do Ulysses, que era o condutor do partido", diz o cientista político Marcos Figueiredo, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).

"Depois da criação do PSDB e a eleição presidencial que deu expressão nacional a outros partidos, o PMDB se tornou uma federação de lideranças regionais e perdeu expressão. Essa crise ajuda a mostrar como os rostos do PMDB são quase todos ilustres desconhecidos nacionalmente, muitos deles baseados mais em redutos eleitorais do que em plataformas sólidas."

Uma das rachaduras mais explícitas entre o projeto de Ulysses e o que o PMDB se tornou, dizem membros mais antigos do partido, foi a postura do Conselho de Ética do Senado para arquivar sumariamente as 11 representações contra Sarney, aplicando o simples conceito de maioria contra minoria.

"Em outros tempos o Ulysses daria murros na mesa diante de um argumento tão fraco. Diria que o conselho é de ética, não um palco de governo contra oposição. Ele sempre achou esse tipo de lógica muito perigosa porque acaba com a interlocução em questões que muitas vezes são conciliáveis", disse um peemedebista, que preferiu não se identificar, aliado do maior expoente da sigla.

O senador Salgado, no entanto, não hesitou para defender essa visão mais belicista. "Não pensem que chegarão aqui, atacarão um presidente, eleito pelo PMDB, que tem toda uma historia, e achar que vamos ficar calados", disse o suplente do ministro Hélio Costa (Comunicações) durante a crise com Sarney.

Depois, insinuou uma prática que Ulysses dizia dispensar, por preferir o confronto aberto com a maioria dos adversários: as ameaças veladas. "Não estamos dispostos a aceitar essa situação [de pressão ao presidente do Senado]. Agora, doa a quem doer, chore quem chorar, reclame quem reclamar, nós vamos tomar posições firmes", afirmou da tribuna.

Para a presidente do partido, Íris de Araújo (PMDB-GO), as tensões entre "históricos" e "moderados" são normais "no maior partido do Brasil, uma entidade complexa porque tem mais de 1.200 prefeitos, vários governadores e ministros, além dos presidentes das duas Casas do Congresso".

Ela avalia que a convivência entre os dois grupos seria mais pacífica se o PMDB usasse sua capilaridade para buscar candidatura própria à Presidência da República, e não apenas esperar para definir qual facção cerrará fileiras com petistas e qual irá junto dos tucanos.

"Sou uma representante da base do partido e sei que nossa base é muito fiel não só pela história de Ulysses e Tancredo, que são nossas marcas registradas, mas também por nosso estilo de governar. Temos bons administradores e uma candidatura à Presidência uniria mais o partido. Um partido com tanta tradição e com uma base tão grande não pode ficar à espera do que os outros vão decidir", afirmou.

Mudanças estruturais
Não é só no estilo dos seus parlamentares que o PMDB aponta para a superação da figura de Ulysses. A formação de grupos para mulheres, negros e jovens nunca esteve nos planos do maior expoente da legenda. Hoje, diante de iniciativas do tipo promovidas pelos outros grandes partidos, os peemedebistas capitularam.

"Na cabeça do Ulysses a gente tem que participar sem estar setorizado. Mas as coisas mudaram. Por esse motivo aceitei convite para assumir essa presidência nacional do PMDB Afro", disse Jorge Coutinho, ator e mais um dos históricos do partido. "Eu concordco com o Ulysses. Não precisava ter mesmo. Mas a nossa cabeça é uma e a dos outros é outra."

Coutinho afirma que assumiu a tarefa para estimular o partido a participar de ações comunitárias e se reaproximar do povo. Mas admite que se sente desconfortável com os novos integrantes, principalmente aqueles com passagem pela Arena, e que se aninham no PMDB para ficarem mais perto do poder central.

"Como PMDB tem muita gente, virou um balaio de gatos. O grande erro do PMDB, o Ulysses dizia muito, é que o governo tem que governar com o partido. Mas a base do partido não está no poder. Não conheço os secretários do PMDB no Rio nem os ministros. E sou fundador do partido."

Ex-presidente do Senado e memória da história do partido, o deputado Benevides diz que hoje o PMDB é mais homogêneo em suas decisões do que nos últimos anos e que se ajustou à conjuntura da política eleitoral brasileira.

"O partido sempre esteve aberto aos identificados com os seus propósitos. Ao albergar todas essas figuras já pertencentes a outras facções nós abrimos espaço na defesa dos nossos postulados. Um partido de centro-esquerda", afirmou.

Sente-se confortável em um partido com tantas caras novas, muitas delas de ex-adversários seus, deputado? "A gente se acostuma, meu filho. Não dá para ser o que já foi."

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