sábado, 29 de agosto de 2009

Por dentro do cofre do MST


Assertivos do ponto de vista ideológico, os líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra são evasivos quan-do perguntados de onde vêm os recursos que sustentam as invasões de fazendas e manifestações que o MST promove em todo o Brasil. Em geral, respondem que o dinheiro é proveniente de doações de simpatizantes, da colaboração voluntária dos camponeses e da ajuda de organismos humanitários. Mentira. O cofre da organização começa a ser aberto e, dentro dele, já foram encontradas as primeiras provas concretas daquilo de que sempre se desconfiou e que sempre foi negado: o MST é movido por dinheiro, muito dinheiro, captado basicamente nos cofres públicos e junto a entidades internacionais. Em outras palavras, ao ocupar um ministério, invadir uma fazenda, patrocinar um confronto com a polícia, o MST o faz com dinheiro de impostos pagos pelos brasileiros e com o auxílio de estrangeiros que não deveriam imiscuir-se em assuntos do país.

VEJA teve acesso às informações bancárias de quatro organizações não governamentais (ONGs) apontadas como as principais caixas-fortes do MST. A análise dos dados financeiros da Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca), da Confederação das Coo-perativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab), do Centro de Formação e Pesquisas Contestado (Cepatec) e do Instituto Técnico de Estudos Agrários e Cooperativismo (Itac) revela que o MST montou, controla e tem a seu dispor uma gigantesca e intrincada rede de abastecimento e distribuição de recursos, públicos e privados, que transitam por dezenas de ONGs espalhadas pelo Brasil:

• As quatro entidades-cofre receberam 20 milhões de reais em doações do exterior entre 2003 e 2007. A contabilização desses recursos não foi devidamente informada à Receita Federal.

• As quatro entidades-cofre repassaram uma parte considerável do dinheiro a empresas de transporte, gráficas e editoras vinculadas a partidos políticos e ao MST. Há coincidências entre as datas de transferência do dinheiro ao Brasil e as campanhas eleitorais de 2004 e 2006.

• As quatro entidades-cofre receberam 43 milhões de reais em convênios com o governo federal de 2003 a 2007. Existe uma grande concentração de gastos às vésperas de manifestações estridentes do MST.

• As quatro entidades-cofre promovem uma recorrente interação financeira com associações e cooperativas de trabalhadores cujos dirigentes são ligados ao MST.

• As quatro entidades-cofre registram movimentações ban-cárias estranhas, com vul-tosos saques na boca do caixa, indício de tentativa de ocultar desvios de dinheiro.

Entre 2003 e 2008, segundo levantamentos oficiais, cerca de trinta entidades de trabalhadores rurais receberam do governo federal o equivalente a 145 milhões de reais. O dinheiro é repassado em forma de convênios, normalmente para cursos de treinamento. O Tribunal de Contas da União já identificou irregularidades em vários desses cursos. São desvios como cadastros de pessoas que não participaram de aula alguma e despesas que não existiram justificadas com notas frias. A Anca, por exemplo, teve os bens bloqueados pela Justiça após a constatação de que uma parte dos recursos de um convênio milionário assinado com o Ministério da Educação, para alfabetizar jovens, foi parar nos cofres do MST. Teoricamente, a Anca, a Concrab, o Cepatec e o Itac são organizações independentes, sem nenhum vínculo oficial entre si ou com o MST. Mas só teoricamente. A quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico das entidades-cofre mostra que elas fazem parte de um mesmo corpo, são uma coisa só, bem organizada e estruturada para dificultar o rastreamento do dinheiro que recebem e administram sem controle legal algum.

TORNEIRA ABERTA Milhões de reais do governo Lula serenaram durante seis anos a fúria do MST

Eis um exemplo da teia que precisa ser vencida para tentar entender como os recursos deixam o cofre da entidade e viajam por caminhos indiretos ao MST. Uma das beneficiárias de repasses da Anca é a gráfica Expressão Popular. Seus sócios são todos ligados ao MST, como Suzana Angélica Paim Figueiredo, advogada do escritório do ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, que atua em causas de interesse do MST. Suzana faz parte da banca que defende o terrorista italiano Cesare Battisti, preso no Brasil. A advogada ainda é presidente de uma segunda editora, a Brasil de Fato, que também recebe recursos da Anca, também presta serviços ao MST e tem como conselheiro ninguém menos que João Pedro Stedile, líder-mor do MST, um dos principais defensores da não extradição de Battisti. Anca, Brasil de Fato e MST, embora sem vínculos aparentes, funcionavam no mesmo conjunto de salas em São Paulo. Procurada, a advogada Suzana não quis esclarecer que tipo de serviço as gráficas prestaram à Anca. Indagadas, o máximo que as três entidades admitem é que existe uma parceria entre elas. Essa parceria, ao que tudo indica, serve inclusive para ocultar as atividades do departamento financeiro do movimento sem-terra.

Além de funcionarem nos mesmos endereços, como é o caso da Itac e da Concrab, e de dividirem os mesmos assessores e telefones, como a Anca e a gráfica, as entidades curiosamente recorrem aos mesmos contadores e advogados – eles também, ressalte-se, integrantes de cooperativas ligadas ao MST. A análise dos dados sigilosos revela que Ilton Vieira Flores, o contador da Anca, o cofre principal do MST, é um dos responsáveis pelo Cepatec, outra fonte de arrecadação de dinheiro do movimento. O contador também é diretor da Cooperbio – um excelente exemplo, aliás, de como as ONGs ligadas ao MST se entranharam no governo. A cooperativa, que tem como função intermediar recursos para associações de trabalhadores rurais que se dedicam à fabricação de matéria-prima para a produção de biocombustíveis, assinou convênios milionários com a Petrobras. O presidente da Cooperbio, Romário Rossetto, é primo do presidente da Petrobras Biocombustível, o petista Miguel Rossetto, ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, uma das principais fontes de recursos da Anca, do Cepatec, da Concrab e do Itac.


TORNEIRA FECHADA O ministro Guilherme Cassel, do Desenvolvimento Agrário (no alto, à esq.), cortou verbas para convênios. Resultado: o MST, comandado por Marina dos Santos, ameaça retaliar

Há muito que desvendar a respeito do verdadeiro uso pelo MST do dinheiro público e das verbas provenientes do exterior. A Anca, por exemplo, é investigada desde 2005 por suas ligações com o movimento. A quebra do sigilo mostra que funcionários da entidade realizaram saques milionários em dinheiro em datas que coincidem com manifestações promovidas pelo MST e também com períodos eleitorais. Outra coincidência: tabulando os gastos das entidades, resta evidente que parte expressiva dos recursos é destinada a pessoas físicas ou jurídicas vinculadas ao MST. Há também transferências bancárias suspeitíssimas. Em agosto de 2007, 153 000 reais do Cepatec foram parar na conta de Márcia Carvalho Sales, uma vendedora de cosméticos residente na periferia de Brasília. "Não sei do que se trata, não sei o que é Cepatec e não movimento a conta no banco há mais de três anos", diz a comerciária. O Cepatec também não quis se pronunciar.

Para fugir a responsabilidades legais, o MST, embora seja onipresente, não existe juridicamente. Não tem cadastro na Receita Federal, e, portanto, não pode receber verbas oficiais. "Por isso, eles usam essas entidades como fachada", diz o senador Alvaro Dias, do PSDB do Paraná, que presidiu a CPI da Terra há quatro anos e, apesar de quebrar o sigilo das ONGs suspeitas, nunca conseguiu ter acesso aos dados bancários. Aliados históricos do PT, os sem-terra encontraram no governo Lula uma fonte inesgotável de recursos para subsidiar suas atividades. Uma parcela grande dos convênios com as entidades ligadas ao MST destina-se, no papel, à qualificação de mão de obra. Mas é quase impossível averiguar se esse é mesmo o fim da dinheirama. "Hoje o MST só sobrevive para parasitar o estado e conseguir meios para se sustentar", diz o historiador Marco Antonio Villa.

O MST sempre utilizou o enfrentamento como peça de marketing do movimento. No governo passado, os sem-terra chegaram a organizar uma marcha que reuniu 100 000 pessoas em um protesto em Brasília, além de invadirem a fazenda do presidente da República com direito a transmissão televisiva. No governo Lula, a relação começou tensa, mas foi se acalmando à medida que aumentavam os repasses de dinheiro e pessoas ligadas ao movimento eram nomeadas para chefiar os escritórios regionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O MST passou, então, a concentrar os ataques à iniciativa privada, especialmente ao agronegócio. Os escritórios do Incra se tornaram suporte para ações contra produtores rurais, muitos deles personagens influentes na base aliada do governo. Além disso, os assentamentos contribuíram para aumentar a taxa de desmatamento e as ONGs ligadas à reforma agrária se tornaram um ralo pelo qual o dinheiro público é desviado. Esse estado de coisas levou à instalação de uma CPI no Senado e, ato contínuo, a um recuo do Planalto nos afagos aos sem-terra. A pretexto da crise econômica mundial, o governo cortou mais de 40% da verba prevista para os programas de reforma agrária. Cedendo à pressão de ruralistas, tirou das mãos do MST o comando de escritórios estratégicos do Incra, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pernambuco, e colocou no lugar pessoas indicadas por ruralistas. Por fim, o golpe mais dolorido: fechou a milionária torneira dos convênios.

As ONGs ligadas ao MST chegaram a receber quase 40 milhões de reais em um único ano. No início do governo Lula, em 2003, esses repasses não alcançavam 15 milhões de reais. No ano seguinte, cresceram substancialmente, ultrapassando os 23 milhões de reais. Em 2005, o valor aumentou novamente, atingindo 38 milhões de reais. No segundo mandato, as denúncias de irregularidades envolvendo entidades ligadas aos sem-terra ganharam força. E o dinheiro federal para elas foi minguando. Em 2007, ano de abertura da CPI, os repasses às ONGs ficaram em 28 milhões de reais. No ano passado, as entidades receberam 13 milhões. E, nos oito primeiros meses deste ano, os cofres das ONGs do MST acolheram menos de 7 milhões de reais em convênios com o governo federal. Como reação, a trégua com o governo também minguou. No início de agosto, 3 000 militantes invadiram a sede do Ministério da Fazenda. A ação em Brasília foi comandada pela nova coordenadora nacional do MST, Marina dos Santos, vinculada a setores mais radicais do movimento. No protesto, o MST exigiu o assentamento imediato de famílias que estão acampadas. Nos bastidores, negocia a retomada dos repasses para as ONGs e a recuperação do comando das unidades do Incra. Em conversas reservadas, existem até ameaças de criar problemas para a candidatura presidencial da ministra Dilma Rousseff. O governo Lula agora experimenta o gosto da chantagem de uma organização bandida que cresceu sob seus auspícios.

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Com reportagem de Otávio Cabral

veja.com


José Rainha, O Rei dos Pelegos

CONTATOS CERTOS Noboru Nishikawa, do assentamento Chico Mendes, acima, prefere a liderança de Rainha (ao lado): tem lógica

O cenário é decrépito, mas emoldura uma disputa de milhões de reais. As margens de uma estrada vicinal em Araçatuba, no oeste de São Paulo, estão há seis meses tomadas por 500 barracos. Uma placa insta os motoristas dos caminhões de cana-de-açúcar a tomar cuidado para não atropelar ninguém: "Atenção - Acampamento à frente". Nos dias úteis, o perigo de acidente é menor, já que a maioria dos casebres está fechada e o lugar tem o aspecto de uma favela-fantasma do velho oeste americano - se no velho oeste tivessem existido favelas. Um senhor de idade avançada, sentado à sombra o dia inteiro a observar o vaivém de carregamentos de cana, explica que vive ali só para guardar lugar para o filho, que trabalha na cidade. Ele conta que muitos abandonaram emprego com carteira assinada para morar naquele cortiço rodoviário. Segundo as regras estipuladas pelos líderes que manobram a massa sem-terra, é preciso dormir pelo menos duas noites por semana no acampamento para receber a cesta básica e para não perder a vez em uma possível divisão de lotes, no futuro. Por isso, aos sábados e domingos o local fervilha com a presença de 1 000 pessoas ou mais que vêm fazer churrasco, reunir-se com a família ou simplesmente marcar presença. E que presença: os roubos de galinha e os atos de vandalismo aumentaram nas pequenas fazendas das redondezas. Estamos no acampamento Deputado Adão Pretto, uma fábrica de miséria construída por José Rainha Júnior, o líder sem-terra que já escapou de ser condenado por homicídio e, em julho passado, teve uma pena de cadeia por porte ilegal de arma substituída por regime aberto e prestação de serviços à comunidade.

FECHADO EM DIAS ÚTEIS: O acampamento Deputado Adão Pretto, em Araçatuba, é obra da dissidência do MST que não deixa de usar a bandeira do grupo

Rainha lidera uma dissidência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que, segundo ele próprio e graças à adesão de outros grupos sem-terra, já reúne mais militantes em São Paulo do que a vertente original da organização. Apesar de excluído da direção nacional do MST e desautorizado a falar em nome do movimento, Rainha continua usando sua sigla e sua bandeira. Isso é possível porque o MST não possui representantes legais nem personalidade jurídica - uma malandragem para não precisar responder a processos na Justiça. O mega-acampamento em Araçatuba faz parte de uma demonstração de força cujo objetivo é superar o MST oficial na disputa por dinheiro público. Não há terras suficientes na região para assentar todas as pessoas que depositaram suas esperanças naqueles barracos de beira de estrada. Mas terra é o de menos para Rainha e seus desafetos do MST oficial. O objetivo é ver quem consegue mobilizar o maior número de pessoas para pressionar o governo por novos "convênios" com entidades controladas por líderes sem-terra. Esse é o mecanismo dos repasses que, em tese, deveriam pagar projetos educacionais, habitacionais e de "aumento da biodiversidade" em assentamentos. Indiretamente, no entanto, o dinheiro acaba servindo para financiar invasões, protestos que terminam em vandalismo e até campanhas eleitorais de vereadores. Desde 2007, o Ministério do Desenvolvimento Agrário aprovou 4 milhões de reais em convênios com duas entidades ligadas a Rainha, que atua apenas em São Paulo. Isso equivale a quase um décimo do total que o governo federal repassou a quatro ONGs ligadas ao MST oficial em todo o país, entre 2003 e 2007. Na comparação, portanto, pode-se considerar que Rainha tem sido bem-sucedido em suas táticas de arrecadação. "Durante quatro anos estivemos atrelados ao MST, mas recentemente passamos para o lado do Rainha", diz Noboru Nishikawa, ex-coordenador do assentamento Chico Mendes, em Araçatuba. E completa: "Ele tem mais facilidade para agilizar as coisas com o governo".

A explicação que a coordenação nacional do MST dá para a cisão entre seus líderes, em 2004, é política: Rainha, ao contrário da maioria de seus camaradas, achava que era preciso apoiar abertamente o governo Lula. O grupo dele, ao contrário do MST oficial, já tem até candidato para 2010, conforme anunciou publicamente em maio deste ano: trata-se de Dilma Rousseff, a ministra da Casa Civil. O que se tenta vender como questão de princípios, no entanto, esconde apenas maneiras diferentes de chegar ao mesmo objetivo: as verbas federais. O MST oficial organiza marchas e ocupações de prédios públicos, como as que ocorreram em todo o país no mês passado, para pressionar por repasses. Rainha prefere investir na tradicional invasão de terra. Em fevereiro, comandou o que chamou de Carnaval Vermelho, com a ocupação de duas dezenas de propriedades no oeste paulista, a maioria no Pontal do Paranapanema, onde se concentra a base de sua militância. A criação do mega-acampamento em Araçatuba, em março, marcou a abertura de uma nova fronteira de invasões. José Rainha está expandindo suas atividades para lá por um motivo básico: a maior parte das áreas disponíveis para reforma agrária no Pontal são terras devolutas e estão a cargo da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), que não faz repasse de recursos para entidades não governamentais. Como na região de Araçatuba praticamente não há terras griladas, as desapropriações são responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do governo federal. Rainha já disse diversas vezes que prefere trabalhar com o Incra. Tem lógica: o instituto adora dar dinheiro para ele.

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