sábado, 22 de agosto de 2009

O fantasma do autoritarismo - Memórias

LULA NA PARADA
O presidente em cerimônia militar no Planalto: vítima do regime de exceção e beneficiado pelo denuncismo

Lula se deixa enganar por
uma associação de assessores
de imprensa de empresas
estatais que se fazem passar
por jornalistas e manda para o Congresso
um projeto de lei que representa o mais sério
ataque à liberdade de expressão no Brasil
desde o regime militar

Ao entrar em seu vigésimo mês de governo, o PT tem trunfos importantes para comemorar. A economia finalmente começou a dar sinais de recuperação, com a inflação sob controle e o desemprego em queda. Lá fora, o risco-país permanece baixo e os investidores estrangeiros mantêm sua atenção no Brasil. O presidente Lula, que segue como um dirigente prestigiado no exterior, acaba de recuperar 10 pontos em sua popularidade, voltando a ter 38% de aprovação do eleitorado brasileiro. A dois meses do primeiro teste do governo petista nas urnas, sua principal candidata, a prefeita Marta Suplicy, aparece pela primeira vez na liderança das pesquisas. Nesse cenário, tudo parecia sob controle e bem encaminhado, com o país entrando num sereno período de prosperidade – mas o governo resolveu disparar um tiro de bazuca no próprio pé ao revelar um incontrolável tique autoritário. Primeiro, divulgou um projeto de controle ditatorial da produção de cinema e televisão, que incluía até intromissão na linha editorial da programação. Em seguida, despachou ao Congresso uma proposta que, em resumo, consiste no mais severo ataque à liberdade de imprensa no país desde o regime militar (1964-1985).

O "CACO" DA CASA CIVIL
José Dirceu: sua assessoria na Casa Civil incluiu o artigo que tornou o projeto ainda mais liberticida

A ÚLTIMA DO "CHINA"
Na Alemanha nazista, ser judeu não era uma questão absoluta. Goebbels decidia quem era judeu. Gushiken disse que a liberdade de imprensa também não é absoluta O Palácio do Planalto não esperava que as duas propostas gerassem uma reação tão profundamente indignada da sociedade – no Brasil e no exterior. O projeto que cria a agência nacional de cinema e audiovisual, batizada de Ancinav, já sofreu modificações, com a exclusão das interferências na linha editorial, e o ministro da Cultura, Gilberto Gil, anunciou que "tudo o que possa ser interpretado como autoritário será reescrito ou eliminado". Porém, a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo, cuja missão é "orientar, disciplinar e fiscalizar" o exercício da profissão de jornalista, está integralmente mantida, apesar da flagrante tentativa de cercear a liberdade de imprensa, pensamento e expressão. "Não poderíamos ter escolhido um momento pior para lançar esse projeto", diz um ministro com gabinete no Palácio do Planalto, ao referir-se à onda de denúncias contra o presidente do Banco Central e o do Banco do Brasil. "Passou a clara impressão de uma tentativa de ameaçar a imprensa, que não é a intenção do governo. Por que razão fomos meter a mão nessa cumbuca?", lamenta-se o ministro. Talvez porque no DNA de alguns petistas do primeiro time esteja ainda inscrita a palavra de ordem dos bolcheviques russos: "Todo o poder aos soviets". Para quem não sabe, soviet, em russo, significa conselho.

SACERDOTE DE SI PRÓPRIO
O projeto agradou apenas a figuras cavilosas como Frei Betto, que é padre quando lhe convém, jornalista quando lhe convém e assessor especial do presidente quando lhe convém

Pela proposta remetida ao Congresso, o Conselho Federal de Jornalismo seria composto de dez membros, com a missão de zelar pelo comportamento ético dos jornalistas e – aí é que mora o perigo – pelas "atividades jornalísticas", o que não passa de um velado cerceamento da liberdade de imprensa. Em sua defesa, o governo alega que não é autor do projeto nem pretende baixar controle algum sobre a imprensa. "O governo não terá nenhuma ingerência nesse assunto: trata-se de uma iniciativa dos próprios jornalistas, que indicarão livremente os integrantes do conselho", escreveu o assessor de imprensa do Palácio do Planalto, o jornalista Ricardo Kotscho, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo. Da Espanha, Frei Betto, assessor especial do presidente Lula, disse que os grandes meios de comunicação "fazem um terrorismo psicológico porque não querem perder o monopólio da palavra" e, por isso, são contra o conselho. "Há tempos que os jornalistas, e eu me incluo como profissional do jornalismo, querem um conselho próprio para a regulamentação da ética profissional." Desconhecem-se as razões pelas quais Frei Betto possa saber o que querem os jornalistas brasileiros. Mas talvez tenha razão, pois, mutante como é, ora se comporta como jornalista, ora como assessor de Lula, ora como padre, dependendo do que mais lhe convém em cada momento.


"Por que uma democracia que elegeu presidentes quatro vezes – e que teve papel fundamental num processo de impeachment – delegaria a cinco pessoas o controle de sua imprensa? Além de criar códigos de conduta e estabelecer normas de processo disciplinar, o conselho ainda reserva para si a prerrogativa de resolver "os casos omissos na lei" – com punições que podem chegar à cassação do registro profissional. O sujeito punido deve procurar trabalho em outra atividade. Isso é ou não é intimidador? Qualquer órgão que represente ameaça à liberdade de informação, tenha o nome que tiver, a origem que tiver, precisa ser rejeitado enfaticamente
pela sociedade e por seus representantes democráticos."
WILLIAM BONNER, editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional

Nem parece o mesmo governo cujo chefe disse em dezembro passado, em seu balanço de fim de ano, que "notícia é tudo aquilo que nós não queremos que seja publicado, o resto é publicidade". Pois o mesmo governo, o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mandou ao Congresso na semana passada o projeto de lei que cria o Conselho Federal de Jornalismo, que, em sua essência, transforma jornalistas em propagandistas de governos. No processo de explicação das iniciativas, os comissários petistas acabaram revelando uma preocupante ligação com um passado totalitário que se achava sepultado pela prática democrática. O mais enfático viajante desse túnel do tempo ideológico foi Luiz Gushiken, secretário de Comunicação e Gestão Estratégica, que tem sala no Palácio do Planalto, para quem "nada é absoluto, nem a liberdade de imprensa".

A liberdade de imprensa é não apenas um bem absoluto da sociedade como está estabelecida na Constituição brasileira. Nenhuma atividade está livre de maus profissionais e de cometer abusos. A imprensa muito menos. Por sua natureza e pela particularidade de seu exercício, a imprensa está entre as que mais cometem erros e fazem julgamentos precipitados. Ela precisa mesmo estar sob constante vigilância. Ocorre que está, sempre. Cada vez que chega às bancas, os jornais e as revistas estão se submetendo a julgamento popular instantâneo. Para as reparações mais específicas, a Constituição prevê que os abusos da imprensa devem ser corrigidos por meio da Justiça, sem que exista necessidade de algum órgão superior para estabelecer limites à liberdade de expressão. É assim que as coisas funcionam nos países democráticos. Mas não nos arraiais do PT, como se observa neste trecho do artigo de Ricardo Kotscho: "O objetivo central da criação do CFJ – a exemplo do que há muito ocorre com advogados, médicos, economistas e outras categorias – é exatamente defender a dignidade e a ética exigidas no exercício da profissão, para garantir à sociedade a plenitude da liberdade de imprensa, e não a liberdade para alguns profissionais e algumas empresas divulgarem o que bem entendem a serviço dos seus interesses".


"Há duas tentações que nenhum governante pode sentir: impedir a impressão de notícias e autorizar a impressão de moedas. Por isso, defendo a liberdade de imprensa e a autonomia do Banco Central. E esse projeto do conselho cria uma tentação autoritária. O autoritarismo raramente se instala de uma vez. Ele chega sempre aos poucos, sem que as pessoas percebam. E, às vezes, vem disfarçado de boas intenções."

CRISTOVAM BUARQUE, senador (PT-DF) e ex-ministro da Educação


Nada mais revelador. Em todas as profissões citadas pelo secretário de imprensa do PT, inclusive a de jornalistas, o que garante a qualidade do serviço prestado à comunidade é justamente o arbítrio individual dos profissionais e dos dirigentes das empresas onde eles trabalham. Os conselhos profissionais têm efeito secundário e muitas vezes nulo no comportamento ético e na prática cotidiana dos advogados, médicos, economistas e outras categorias profissionais. "Não existe ética coletiva. A ética é uma instância individual", ensinava o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). Não é preciso filosofar em alemão para saber isso. O próprio Lula construiu sua carreira fazendo opções éticas individuais que mudaram sua vida e, com sua eleição a presidente, a do Brasil. Quando o Partido Comunista quis recrutar Lula para seus quadros nos anos 70, o jovem e idealista líder metalúrgico mandou os enviados de Moscou às favas. Lula achou as propostas e os métodos dos comunistas "imprestáveis para quem queria fazer política de modo transparente e às claras", como ele lembraria mais tarde. Os assessores de Lula teriam poupado o governo de constrangimentos e desgastes desnecessários com o projeto estapafúrdio caso tivessem informado corretamente o presidente. Aparentemente não o fizeram.


"Este governo parece ter na cabeça o modelo chinês, de combinar abertura na economia com alguma possibilidade de controle na política e na cultura. É claro que os chineses são um caso mais radical. Sempre, em todos os governos, acalentou-se essa idéia de controlar a mídia e a cultura. Mas essa possibilidade chegou num momento em que os meios técnicos tornam isso impossível, graças às centenas de possibilidades de comunicação. É um momento não só de liberdade de expressão como de democratização da expressão."

FERNANDO GABEIRA, deputado federal (sem partido/RJ) e jornalista


Lula tem uma boa imagem da imprensa, como atestam suas declarações, em especial uma de fevereiro passado. "Eu acho que a imprensa joga um papel muito importante quando levanta as dúvidas, agindo cada vez mais com seriedade", disse o presidente Lula. É de supor que o presidente foi levado a acreditar que a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), patrona do projeto, é um órgão composto de jornalistas no pleno exercício da profissão e empenhados no dia-a-dia de levantar dúvidas e fazer jornais e revistas com seriedade. Não é. Do ponto de vista legal, a Fenaj tem a aparência de um órgão legítimo, que representa os 100.000 jornalistas brasileiros. Como menos de 30% dos jornalistas são sindicalizados, pode-se afirmar que a Fenaj representa uma minoria. Eleita no mês passado, a diretoria atual da entidade não é uma expressão de jornalistas que trabalham em jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão. A maior parte está afastada das redações e presta serviços de assessoria de imprensa, em geral a empresas estatais e políticos. A atual diretoria é composta de sete jornalistas, dos quais apenas dois não são filiados ao PT. E, dos dois não filiados, um é franca e publicamente simpático ao partido. Confira:

Sérgio Murillo de Andrade, presidente da Fenaj, está afastado das redações há catorze anos. Catarinense, 42 anos, foi assessor do primeiro vereador do PT eleito em Florianópolis, em 1992, e trabalhou na prefeitura na gestão do vice-prefeito Afrânio Boppré, do PT. É um petista de primeira hora, filiado ao PT desde 1982.

Frederico Barbosa Ghedini, 51 anos, é vice-presidente da entidade e trabalha numa editora especializada em publicações sobre tecnologia da informação e telecomunicação desde 1988. Atualmente, está licenciado da empresa. É sócio-fundador do PT em São Paulo.

Antônio Pereira Filho, segundo-vice-presidente, filiou-se ao PT em dezembro do ano passado. Aos 36 anos, integra a direção do partido em Alagoas e trabalha como assessor de imprensa de um sindicato.

Celso Schroeder, secretário-geral, é professor universitário, trabalha como chargista desde 1986 e está filiado ao PT há mais de quinze anos. Em 1994, candidatou-se sem sucesso a deputado federal pelo partido.

Aloísio Soares Lopes, primeiro-secretário, 38 anos, mineiro. Há cinco anos trabalha como assessor de imprensa. É filiado ao PT desde 1992.

Maria José Braga, 40 anos, tesoureira, não tem filiação partidária. Trabalha como repórter de jornal. É simpatizante do PT. Na última eleição, assinou um manifesto de apoio à candidata petista ao governo de Goiás.

Carmem Lúcia Souza da Silva, segunda-tesoureira, 32 anos, preside o Sindicato dos Jornalistas do Pará. Em dez anos de profissão, foi repórter, assessora de imprensa e professora universitária. Não tem filiação partidária.

Pelo projeto enviado ao Congresso, caberá a esses sete jornalistas indicar a primeira diretoria do Conselho Federal de Jornalismo. É exagero supor que os conselheiros serão simpáticos ao PT nas suas escolhas? Nos últimos dias, várias autoridades do governo, incluindo o próprio presidente da República, vieram a público reclamar do "denuncismo" da imprensa, que estaria agindo de forma irresponsável ao enxovalhar a honra alheia sem apresentar provas. A imprensa – no Brasil e no mundo – comete erros e exageros, é claro. Alceni Guerra, ministro da Saúde do governo Fernando Collor, foi massacrado pela imprensa, inclusive por VEJA, sob a suspeita de que teria promovido um festival de irregularidades em sua gestão, mas mais tarde a suspeita se comprovou infundada. Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-secretário-geral da Presidência da República no governo de Fernando Henrique, foi sistematicamente acusado de fazer tráfico de influência quando estava no cargo. Hoje, quatro anos depois, não se comprovou nada de irregular durante sua passagem pelo Palácio do Planalto. Na semana passada, o ex-jornalista Luís Costa Pinto, que trabalhou em VEJA no início dos anos 90, publicou um depoimento na revista IstoÉ relatando sua participação em uma reportagem de capa de VEJA de 1993. A matéria, sobre o então deputado Ibsen Pinheiro, continha números errados a respeito do dinheiro movimentado pelo político, que acabou cassado pela CPI dos Anões do Orçamento. A imprensa erra, mas os erros acabam aparecendo quando não são corrigidos logo em seguida pela apuração correta dos fatos. VEJA lamenta os enganos que cometeu nos casos de Alceni, Eduardo Jorge e Ibsen Pinheiro.

O curioso é que, nos últimos anos, talvez não haja denúncia publicada neste país sem a participação oculta de petistas, que são mestres graduados em fuçar dados sigilosos para fustigar adversários. Os parlamentares do PT também se especializaram em fazer eco a denúncias sem provas e fomentar o denuncismo que agora parece tanto incomodá-los. A própria carreira política do presidente Lula, e de boa parte dos petistas mais estrelados, beneficiou-se largamente da prática denuncista do PT, ajudando a construir a imagem de lisura ética e de combatividade oposicionista do partido. Uma das táticas mais usadas pelo PT era colocar militantes em postos estratégicos do Estado, onde teriam acesso a informações relevantes, e fazer com que vazassem à imprensa. Agora, o governo do PT faz o contrário. Na semana passada, divulgou o rascunho de um decreto pelo qual os servidores são proibidos de falar à imprensa, prerrogativa que ficaria exclusiva a ministros, assessores especiais e chefes de autarquia. É tão autoritário que até o presidente do PT, José Genoíno, se mostrou contra a proposta.

"O servidor público, diante de questões que sinta que são irregulares e ferem a Constituição, não pode ser proibido de falar", diz Genoíno ao defender que os servidores se rebelem contra a medida, caso entre em vigor. "Temos de democratizar ao máximo a sociedade e a relação do Estado com a sociedade", acrescenta Genoíno. O governo parece querer controlar a imprensa pelas portas de entrada e saída, regulando o acesso dos jornalistas às fontes e examinando o que se publica. É uma atitude perfeitamente totalitária e revela a inclinação do governo em querer controlar tudo. Se o Palácio do Planalto quer ampliar o acesso ao sigilo fiscal por parte de órgãos públicos de investigação, como o governo também propôs na semana passada, cabe discutir, pois, nesse caso, o governo está lidando com um dado que está sob sua responsabilidade – os dados fiscais de cada declarante. A imprensa, porém, não faz parte do aparato estatal nas democracias. A imprensa não está sob a esfera de controle ou responsabilidade do Estado. A imprensa não é nem complementar ao Estado. Ela é livre, independente e, em seus melhores momentos, antagônica ao Estado.

Não há democracia que controle a imprensa. Nas ditaduras, no entanto, o lema do "todo o poder aos soviets" está em alta. No Gabão, o ditador Omar Bongo, com o qual o presidente Lula desfilou em carro aberto pelas ruas de Libreville semanas atrás, criou um conselho, integrado por membros indicados pelo governo, cuja missão é punir jornalistas e órgãos de comunicação que publicam artigos caluniosos ou incorretos, segundo critérios dos governistas. Em 2002, dois jornais semanais foram acusados de "minar a confiança no Estado e a dignidade de autoridades governamentais". No Quênia, existe censura prévia: todas as matérias devem ser enviadas à análise das autoridades antes de ser publicadas. A infração à norma rende multa de 13.000 dólares e prisão de até três anos. Em ditaduras mais estáveis, como Cuba e China, a imprensa é um mero e desprezível apêndice do poder. Em Cuba, um departamento vinculado ao comitê central do Partido Comunista escolhe, revisa e corrige as reportagens veiculadas pelos órgãos de comunicação oficiais.

Nas democracias mais sólidas do mundo, a imprensa livre faz parte da ordem natural das coisas. Não por acaso, esses países têm, simultaneamente, a melhor e a pior imprensa. Na Inglaterra, onde não há lei específica para a imprensa, ficando os veículos de comunicação e seus profissionais sujeitos à lei ordinária, existem publicações de primeiríssima qualidade e, também, os célebres tablóides sensacionalistas, que não relutam em invadir a vida privada de quem quer que seja em busca de uma notícia. Em 1993, uma comissão parlamentar inglesa, numa tentativa de controlar o sensacionalismo, propôs a criação de um conselho com poder de punir os tablóides. Não deu certo. Tanto os trabalhistas quanto os conservadores se negaram a aprovar leis que limitassem a liberdade de imprensa. Nos Estados Unidos, graças à Primeira Emenda da Constituição, não há um único mecanismo legal de cerceamento da imprensa. De acordo com Josh Friedman, diretor da Faculdade de Jornalismo da Universidade Colúmbia, em Nova York, a criação de um conselho regulatório da imprensa que visa fiscalizar e penalizar veículos e jornalistas é uma ameaça à democracia. "Isso é um absurdo. Trata-se de uma forma de o governo proteger a si mesmo e evitar que a população do país tenha acesso a informações para tirar as próprias conclusões. Fiscalização e censura são comuns em ditaduras, não em governos democráticos", disse a VEJA.

Além da escalada de medidas autoritárias da semana passada, o governo petista já deu sinais dessa inclinação quando abordou outros assuntos. O mais surpreendente foi constatar a vontade do governo de aprovar a chamada Lei da Mordaça, que pretende punir os integrantes do Ministério Público que repassarem à imprensa informações sobre investigações ainda em curso. É surpreendente porque, quando estava na oposição, o PT não apenas estimulou essa prática como fez ataques cerrados à idéia da Lei da Mordaça, proposta pelo governo tucano. Agora, ficou a favor. O dado mais perigoso é que o governo dá a impressão de que tem vontade de controlar tudo. Como o próprio nome diz, totalitarismo é a doutrina que não se satisfaz em controlar os processos sob a competência do Estado. O totalitarismo almeja controlar todos os processos, mesmo aqueles nos quais a interferência estatal deveria ser meramente marginal – como a vida em família, a pesquisa científica, a produção artística.

A Alemanha nazista produziu os mais completos manuais de submissão da imprensa, do cinema, do teatro, das artes plásticas, da literatura, da educação. Na ex-União Soviética, durante o reinado de Josef Stalin, os livros escolares de história foram reescritos, jornais velhos foram reeditados e inimigos políticos eram eliminados das fotografias. No Camboja de Pol Pot, ter uma emissora de rádio, ainda que rudimentar, era considerado crime capital. Na Itália fascista, o ministro da Educação, Giovanni Gentile, um dos nomes mais influentes do governo de Mussolini, dizia o seguinte: "Tudo para o Estado, nada contra o Estado, ninguém fora do Estado". No Brasil de Lula, obviamente, não existe nada parecido com isso. O governo do PT está apenas confuso. É liberal na economia e autoritário na política. "O governo do PT tem o emblema de Janus, o deus bifronte da mitologia", diz o antropólogo Roberto DaMatta, da PUC do Rio de Janeiro. "Há um lado liberal e outro reacionário, hierárquico e autoritário, que quer cada macaco em seu galho vigiado constantemente por um gorila. Quer reviver a tática gorilista da ditadura." Parece tolo. É um perigo.

ZECA DIRCEU
Em Cruzeiro do Oeste, um editorial do jornal da cidade teve como título o slogan de campanha do filho de José Dirceu. Nem o CFJ agüentaria

Candidato a prefeito pelo PT em Cruzeiro do Oeste, no Paraná, José Carlos Becker de Oliveira, 26 anos, filho do ministro José Dirceu, construiu em sua cidade o que parece ser a república dos sonhos de integrantes do governo federal: aquela em que a imprensa só publica notícias que lhes são favoráveis. No início do ano, a Folha de S.Paulo noticiou que Zeca Dirceu, como prefere ser chamado agora que está em campanha, vinha usando da influência paterna para interceder, junto ao governo federal, pela liberação de recursos para a sua região. Desde então o filho do ministro-chefe da Casa Civil decidiu não só que não mais falaria à imprensa nacional como proibiu todos os integrantes de sua coligação, que reúne doze partidos, de fazê-lo. Entrevistas do candidato, afirma sua assessoria de imprensa, só para o único jornal de Cruzeiro, o Tribuna do Oeste. Para entender tal deferência, basta dizer que, na semana passada, o título de um dos editoriais do semanário reproduzia, letra por letra, o slogan da campanha de Zeca: "Cruzeiro tem futuro". E, para o caso de alguém ainda ter dúvidas sobre o entusiasmo com que a Tribuna encara a candidatura do petista, seu proprietário, Fernando Amaral, faz questão de deixar bem claro: "Meu jornal é a favor do Zeca. Credencial de filho de ministro vale muito mais do que a de deputado federal", diz. Dos outros três candidatos à prefeitura de Cruzeiro do Oeste, com 19.000 habitantes, só um tem espaço na Tribuna: o atual prefeito, Yukio Tominaga, do PPS – que o jornal, em letras garrafais, costuma chamar de "lelé da cuca". Ah, sim: a assessoria de Zeca esclarece que o candidato também fala "ocasionalmente" com o Umuarama Ilustrado (diário que circula na cidade vizinha e que, no início de agosto, publicou duas manchetes consecutivas informando que o ministro Dirceu visitava a região para lançar a candidatura do filho) e concede entrevistas à rádio local. Não por coincidência, a Rádio Difusora de Cruzeiro do Oeste tem como sócio Valter Rocha, candidato a vice-prefeito na chapa de Zeca, e seus estúdios funcionam como uma espécie de subsede do comitê de campanha: o programa de rádio do candidato a ser levado ao ar no horário gratuito, por exemplo, será gravado lá. Desse jeito, nem a Fenaj agüenta.

Vladimir Ilyich Lenin Thomas Jefferson
"POR QUE DEVERÍAMOS ACEITAR A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE IMPRENSA? POR QUE DEVERIA UM GOVERNO, QUE ESTA FAZENDO O QUE ACREDITA ESTAR CERTO, PERMITIR QUE O CRITIQUEM? ELE NÃO ACEITARIA A OPOSIÇÃO DE ARMAS LETAIS. MAS IDÉIAS SÃO MUITO MAIS FATAIS QUE ARMAS." "UMA VEZ QUE A BASE DE NOSSO GOVERNO É A OPINIÃO DO POVO, NOSSO PRIMEIRO OBJETIVO DEVERIA SER MANTÊ-LA INTACTA. E, SE COUBESSE A MIM DECIDIR SE PRECISAMOS DE UM GOVERNO SEM IMPRENSA OU DE UMA IMPRENSA SEM GOVERNO, EU NÃO HESITARIA UM MOMENTO EM ESCOLHER A SEGUNDA SITUAÇÃO."

Thomas Jefferson (1743-1826) e Vladimir Lenin (1870-1924) foram líderes de revoluções que formularam regras básicas das sociedades que ajudaram a criar – os Estados Unidos e a União Soviética, respectivamente. As frases acima registram o pensamento de ambos sobre a liberdade de expressão. O ideário de Lenin resultou num regime em que a censura foi férrea e o silenciamento dos dissidentes, sistemático. As crenças de Jefferson, radicalmente opostas, traduzem-se ainda hoje nos editoriais dos grandes jornais americanos ou em libelos satíricos como Fahrenheit 11 de Setembro, do documentarista Michael Moore. Ou seja, num sistema em que sagrado não é o governo, mas o direito de criticá-lo. Também por isso os Estados Unidos são o que são. Pela razão inversa, a União Soviética morreu.

veja.com (18 de agosto de 2004)

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