quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Filhote do Getulismo

Merval Pereira
O GLOBO


A crise que envolve a Receita Federal, com uma verdadeira rebelião de funcionários de diversos escalões contra o que acusam ser uma “ingerência política” indevida do governo nas atividades do órgão, é uma consequência da ampliação do espaço institucional ocupado pelo PT desde a chegada ao poder central, em 2003, que produziu não apenas mudanças importantes no perfil social das lideranças de base petistas, com os trabalhadores dando lugar hegemônico aos funcionários públicos, mas uma relação muito mais estreita do partido com a máquina do Estado.

Crises semelhantes já aconteceram na Polícia Federal e em outros órgãos públicos, aparelhados pelo petismo e onde grupos disputam entre si a hegemonia política.

Um partido ligado umbilicalmente ao Estado e guiado por um líder personalista faz com que os paralelos com o PTB de Getulio Vargas deixem de ser metafóricos para se tornarem cada vez mais reais, guardadas as devidas diferenças de tempo histórico.

A historiadora Maria Celina ‘’Araújo, do CPdoc da Fundação Getulio Vargas, lembra que o PTB nasceu de uma decisão pessoal de Getulio Vargas, que chamou Segadas Viana, que era então o Secretário do Departamento Nacional do Trabalho — hoje seria o secretárioexecutivo do Ministério do Trabalho — para redigir o estatuto do partido, e depois chamou os sindicalistas para assinar “a ata de fundação”.

Lula faria isso hoje, só que chamaria as Centrais Sindicais, comenta Maria Celina, acrescentando: “O PTB começou assim, e o PT está acabando assim”.

Já o sociólogo Francisco Weffort — fundador do PT e um dos primeiros dissidentes do partido, tendo sido ministro da Cultura nos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, também autor de um artigo famoso em que insinuava que o próprio Lula estava se transformando em um “pelego” — diz que existe hoje “um ressurgimento do corporativismo sindical nas mãos de uma liderança que prometeu que ia encerrá-lo”.

Para Weffort, “Lula é um filhote do getulismo”.

Para a historiadora Maria Celina, “um partido personalista, como foi o PTB, como foi o PDT de Brizola, e em que está se transformando o PT, não tem espaço para as divergências.

Ou acatam a diretriz do chefe ou são considerados desleais, traidores. A política vira uma questão pessoal”.

Desde o início do PT, ele era uma federação de facções que formavam maiorias em torno de algumas tendências, analisa Maria Celina.

“Mas hoje, Lula está acima das tendências, e isso desinstitucionaliza o partido”.

Ela cita o politólogo italiano Ângelo Panebianco, professor de relações internacionais da Faculdade de Ciência Política da Universidade de Bolonha, que define os partidos personalistas como “partidos carismáticos”, nos quais, quando o líder morre, nunca há um substituto à altura.

“Esses partidos acabam sendo instrumentos de crise, porque se o líder tem qualquer ação que causa certo furor na sociedade, o partido todo é atingido”, analisa Maria Celina.

Panebianco chamou também a atenção para a figura do “profissional oculto”, em seu trabalho sobre as transformações dos partidos de massas em profissionais eleitorais, como é o caso do PT no Brasil. Panebianco descreve o “profissional oculto” como “uma figura indissoluvelmente relacionada à expansão da intervenção do Estado e à sua colonização por parte dos partidos”.

Mas o PT, segundo a historiadora do CPdoc da FGV, “é mais eficiente do que o antigo PTB no aparelhamento do Estado, mesmo porque a máquina pública hoje é mais sofisticada”.

Nos seus estudos ela identifica que, no Brasil da Nova República, grande parte do funcionalismo público é petista, a máquina já era petista no governo Fernando Henrique.

“A Receita Federal está mostrando agora o que todo mundo já sabia, que está aparelhada pelo PT há muito tempo, só que agora, há um grupo de petistas funcionários públicos que não estão satisfeitos, e é esse grupo que começa a criar problemas”.

Desse ponto de vista, é muito diferente do PTB, que não tinha quadros dentro do Estado, era muito mais um partido eleitoral.

“Não havia espaço para a atuação de sindicalistas no governo. Getulio até tentou nomear uns sindicalistas para os antigos IAPs, (Institutos de Aposentadoria e Pensão), mas a reação era grande. A República Sindicalista era uma ameaça de comunistas”.

Para ela, a Guerra Fria “é uma variável interveniente que impossibilita comparar o PTB com o PT de hoje. O MST hoje é recebido por todos, enquanto as Ligas Camponesas estão na raiz do golpe de 1964”.

Francisco Weffort diz que o peleguismo “foi mudando, se modernizando”. O PTB é criado em 1945 no momento histórico do corporativismo sindical, enquanto a criação do PT é de uma época em que se supunha que esse corporativismo estava superado.

“O próprio Lula dizia que queria acabar com a Era Vargas”.

O Lula da fase de líder sindicalista defendia o fim da Era Vargas, dizia que a CLT é o “AI-5 dos trabalhadores” e ironizava Vargas como sendo o “pai dos pobres e mãe dos ricos”. Hoje, a CLT e a unicidade sindical (apenas um sindicato por categoria em cada município), marcos da Era Vargas, persistem.

A título de um “reconhecimento histórico” das centrais sindicais, o governo as reconheceu oficialmente, permitindo a captação anual de recursos, previstos em mais de R$100 milhões originários do imposto sindical.

Weffort define o peleguismo como uma forma de corporativismo, pois o Estado absorve a organização sindical e a subordina.

Um fenômeno “que era mais fácil de entender nos anos 30 ou 40 do que hoje”.

Ele constata que “a modernização da sociedade brasileira não conseguiu superar essa questão, pelo contrário, houve a modernização da corporação e do peleguismo”.


O economista Fernando Veloso é do Ibmec-RJ e não da FGV, como saiu na coluna de ontem.

Um comentário:

José de Araujo Madeiro disse...

Stenio,

Gostei dos termos empregados para Lula, de pai dos pobres e mão dos ricos.

Eu acrescentaria mais um, o de padrasto da classe média, típico de um governo de ladravases e estimulador do capitalismo especulativo.

Att. Madeiro