Já recomendei, e o faço de novo, o Dicionário Lula, de Ali Kamel (Nova Fronteira). A fala do “companheiro” me levou ao livro. Antes dos verbetes, Kamel escreve uma espécie de ensaio intitulado “Lula, em palavras e números”. Por razões que aquele texto inicial expõe com clareza, o autor afirma que Lula é mais coerente do que incoerente. Escreve ele:
Em se tratando da fala de Lula, uma questão que sempre vem à tona é se ele é ou não coerente. Para muitos, suas opiniões não guardariam uma coerência interna, mas variariam de acordo com o público que o ouve. Eu mesmo tinha essa “impressão” ao iniciar o trabalho para este livro. Acreditava que conseguiria mostrar que o presidente diz uma coisa para um grupo e o seu oposto para um grupo diferente. Não posso negar que isso aconteça, mas a freqüência que pude encontrar é muito baixa e em assuntos secundários, nada que assuma relevância ou que seja notadamente uma característica que torne o presidente diferente da maior parte das pessoas. A imersão no que Lula vem dizendo todos esses anos me permite afirmar que o discurso dele é preponderantemente coerente: ele tem sido repetitivo em suas declarações a respeito de uma variedade de temas, em geral não importando a platéia. A leitura dos verbetes mostrará isso. Podem-se identificar três núcleos a partir dos quais Lula constrói o discurso sobre o seu Governo: as ações governamentais devem ter o pobre como prioridade, a Educação merece atenção especial e a economia tem de ser manejada com extrema responsabilidade.
Embora aponte essa “coerência” — e é preciso ler esse ensaio inicial de quase 90 páginas para entender o que significa essa palavra em termos sociológicos —, Kamel mostra no livro que há incoerências importantes. Uma delas diz respeito justamente ao Bolsa Família. Escreve o autor do Dicionário Lula:
Por paradoxal que seja, é justamente no combate à pobreza que uma das mais gritantes incoerências de Lula vem à tona. É como se fosse uma incoerência dentro da coerência: Lula diz sempre que os pobres são sua prioridade, mas a forma de combater a pobreza muda conforme a conveniência. Falo do Bolsa Família. Lula assumiu o Governo com a enorme bandeira do combate à fome. Logo criou a Secretaria de Segurança Alimentar, com status de ministério, para a qual nomeou o economista José Graziano. Lula, no início do Governo, era um crítico ferrenho das políticas levadas a cabo pelo Governo Fernando Henrique Cardoso. Acreditava que a distribuição de dinheiro por meio de “vales” acomodava as pessoas, tirando delas o estímulo para trabalhar. Ele mesmo disse isso, com todas as letras, em 9/4/03, numa reunião sobre o semiárido nordestino:
(ATENÇÃO, LEITOR, AGORA É LULA QUEM FALA)
Eu, um dia desses, Ciro [Gomes, ministro da Integração Nacional], estava em Cabedelo, na Paraíba, e tinha um encontro com os trabalhadores rurais, Manoel Serra [presidente da Contag - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura], e um deles falava assim para mim: “Lula, sabe o que está acontecendo aqui, na nossa região? O povo está acostumado a receber muita coisa de favor. Antigamente, quando chovia, o povo logo corria para plantar o seu feijão, o seu milho, a sua macaxeira, porque ele sabia que ia colher, alguns meses depois. E, agora, tem gente que já não quer mais isso porque fica esperando o vale-isso, o vale-aquilo, as coisas que o Governo criou para dar para as pessoas.” Acho que isso não contribui com as reformas estruturais que o Brasil precisa ter para que as pessoas possam viver condignamente, às custas do seu trabalho. Eu sempre disse que não há nada mais digno para um homem e para uma mulher do que levantar de manhã, trabalhar e, no final do mês ou no final da colheita, poder comer às custas do seu trabalho, às custas daquilo que produziu, às custas daquilo que plantou. Isso é o que dá dignidade. Isso é o que faz as pessoas andarem de cabeça erguida. Isso é o que faz as pessoas aprenderem a escolher melhor quem é seu candidato a vereador, a prefeito, a deputado, a senador, a governador, a presidente da República. Isso é o que motiva as pessoas a quererem aprender um pouco mais.”
Entendeu bem, companheiro leitor? Quem acha que coisas como o Bolsa Família eram uma esmola, que acomodavam as pessoas, que lhes tiravam a disposição para o trabalho, era Lula. Lula, ele próprio, pensava como um “ignorante”, um “imbecil”. No livro, Kamel prossegue:
Lula criticava, portanto, abertamente, programas que então levavam o nome de Auxílio-Gás, Bolsa Alimentação e Bolsa Escola, que distribuíam dinheiro diretamente às populações necessitadas e previamente cadastradas. Em 27/2/03, no fim do segundo mês de Governo, Lula modificou, por medida provisória, um programa chamado Bolsa-Renda, que dava R$ 60,00 a famílias pobres que habitassem áreas vitimadas pela seca, dando-lhe um novo nome: Cartão Alimentação. Foi em torno desse programa que se criaram muitas polêmicas. O cartão deveria permitir o saque em dinheiro vivo ou servir apenas de meio de pagamento em estabelecimentos comerciais cadastrados? O programa deveria permitir ou não a compra de bebidas alcoólicas ou produtos de higiene? Deveria exigir nota fiscal como prova de que o dinheiro foi bem-usado? Em 20/10/03, quando a confusão em torno do assunto tinha se radicalizado, o que fez o Governo? Editou uma medida provisória criando o Bolsa Família, um programa que seria a união do Auxílio-Gás, do Bolsa Alimentação e do Bolsa Escola, severamente criticados por Lula, mais o Cartão Alimentação, recém-criado pelo Governo. O texto da medida provisória dizia o seguinte, em seu parágrafo único:
O programa de que trata o caput tem por finalidade a unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações de transferência de renda do Governo Federal, especialmente as do Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação - “Bolsa Escola”, instituído pela Lei n.º 10.219, de 11 de abril de 2001, do Programa Nacional de Acesso à Alimentação - PNAA, criado pela Lei n.º 10.689, de 13 de junho de 2003, do Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Saúde - “Bolsa Alimentação”, instituído pela medida provisória n.º 2.206-1, de 6 de setembro de 2001, do Programa Auxílio-Gás, instituído pelo Decreto n.º 4.102, de 24 de janeiro de 2002, e do Cadastramento Único do Governo Federal, instituído pelo Decreto n.º 3.877, de 24 de julho de 2001.
Ou seja, em pouquíssimos meses, os programas que eram criticados por Lula porque “acomodavam” o trabalhador, foram reunidos num superprograma, que daria dinheiro vivo, para ser usado como bem entendesse o beneficiário, sem necessidade de nota fiscal: filhos menores teriam de freqüentar a escola e cumprir a tabela de vacinação prevista pelo Ministério da Saúde e mães esperando bebês teriam de fazer o pré-natal, condicionalidades que nunca foram controladas a contento. Lula, publicamente, mudou o discurso. Quando os jornais começaram a trazer reportagens mostrando que beneficiários do Bolsa Família se recusavam a trabalhar na lavoura e em outras atividades, Lula passou a criticar com veemência quem falava sobre a “acomodação” dos beneficiários, esquecendo-se de que ele fora um dos primeiros a fazê-lo. A entrevista de 20/12/07 para o jornal Folha de Londrina é um bom exemplo:
“Recentemente, uma pesquisa da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] comprovou que os beneficiários do Bolsa Família trabalham mais do que os não beneficiários. Pelos números do estudo, divulgado em maio, a taxa de ocupação dos adultos na extrema pobreza incluídos no programa é 3,1 pontos percentuais maior do que os não beneficiários na mesma situação de renda. Entre as mulheres, a diferença sobe ainda mais e vai a 3,5 pontos. Isso derruba a tese dos que dizem que o Bolsa Família é um assistencialismo que ‘acomoda’ o beneficiário. As pessoas não ficam ‘mal-acostumadas’, não, pelo contrário. O acesso às necessidades básicas aumenta a autoestima e elas vão querendo ter outras conquistas na vida.”
Voltei
Se for o caso, revejam o vídeo. A mim me encanta, em particular, a performance do ator. Observem que Lula não parece menos convicto hoje do que em 2000. Nos dois casos, as palavras parecem brotar de uma pensamento genuíno, profundo, entranhado na alma. A a letra impressa, a palavra capturada em livro, confere a esses Lulas um peso histórico, documental.
Um comentário:
Amigos, peço permissão para fugir do tema e propagandear minha mais nova enquete:
Ted Kennedy morreu e seguiu o destino de todos nós, que viemos nús ao mundo e deste nada levaremos... Ted era o leão do senado norte-americano e concluo que seus 46 anos de vida pública deixaram marcas na política de esquerda daquele país... mas agora que as cortinas do palco se fecharam, Ted é mais um dos muitos milhares que abandonam diariamente o planeta por término de missão... nada melhor, porém, do que elegermos quem será lembrado como o leão do senado brasileiro... no meu entender, há bichos de todo tamanho e plumagem em nossa câmara alta, em função de que lancei uma enquete que visa a rastrear a genética animal de nossos congressistas... os parlamentares mais em evidência serão expostos à análise de nossos amigos visitantes e ao final, definiremos que será nosso Ted... não confundir com TED (Terror das Empregadas Domésticas), nem com TEJ (Terror das Empregadas em Jornalismo)... passem lá no Blog do Clausewitz e elejam o animal que há cada senador... http://novoblogdoclausewitz.blogspot.com
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