Vamos falar um pouco sobre o Brasil que pode ter jeito; aquele que colabora com as nossas esperanças. E ele passa longe daquele palco onde ontem brilharam os senadores Fernando Collor (PTB-AL) e Renan Calheiros (PMDB-AL), com a sua jactância, sua prepotência, sua arrogância enfatuada, seus dedos em riste a articular ameaças e a escandir imposturas. Vamos falar um pouco de um país onde, quem sabe?, não haverá lugar para esses baronetes de um Brasil primitivo, asqueroso, arcaico, eivado de trapaças, vilanias e ignorância engravatada.
No dia 21 de julho, noticiei aqui que o DEM havia decidido recorrer ao STF contra as cotas raciais. Na verdade, o partido entrou com o que se chama Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental contra o sistema de cotas Universidade de Brasília. E pedia uma liminar suspendendo a matrícula de alunos que tivessem sido aprovados por tal sistema. No dia 31, o ministro Gilmar Mendes negou a liminar — o que não quer dizer exame de mérito —, e os racialistas soltaram rojões, dando a causa por vencida. Aqueles que costumam admirar os juízos sempre retos do ministro ficaram um tanta espantados. E a petralhada veio ao blog fazer aquele seu tipo particular de graça: “Aí, hein, o seu ministro predileto também é favorável às cotas!”. Vamos ver. Antes, cumpre lembrar por que o DEM recorreu ao STF.
O partido alega que o sistema de cotas viola diversos preceitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. São eles: os princípios republicano (artigo 1º, caput) e da dignidade da pessoa humana (inciso III); dispositivo constitucional que veda o preconceito de cor e a discriminação (artigo 3º, inciso IV); repúdio ao racismo (artigo 4º, inciso VIII); Igualdade (artigo 5º, incisos I), Legalidade (inciso II), direito à informação dos órgãos públicos (XXXIII), combate ao racismo (XLII) e devido processo legal (LIV).
Além disso, seriam feridos os princípios da legalidade, da impessoalidade, da razoabilidade, da publicidade e da moralidade, corolários do princípio republicano (artigo 37, caput); direito universal à educação (artigo 205); igualdade nas condições de acesso ao ensino (artigo 206, caput e inciso I); autonomia universitária (artigo 207, caput); princípio meritocrático - acesso ao ensino segundo a capacidade de cada um (artigo 208, inciso V).
Entende este escriba que não há pessoa alfabetizada que, lendo a Constituição, não concorde com o arrazoado do DEM. Ou bem as palavras que estão na Carta, com seu sentido cristalino, têm validade ou bem não têm. Se têm, então as cotas são inconstitucionais, a menos que algum juiz decida deixar de lado o que está escrito para fazer justiça com a própria toga. Adiante.
Por que o ministro Gilmar Mendes negou a liminar? Vamos a seu próprio texto: “Embora a importância dos temas em debate mereça a apreciação célere desta Suprema Corte, neste momento não há urgência a justificar a concessão da medida liminar. O sistema de cotas raciais da UnB tem sido adotado desde o vestibular de 2004, renovando-se a cada semestre. A interposição da presente argüição ocorreu após a divulgação do resultado final do vestibular 2/2009, quando já encerrados os trabalhos da comissão avaliadora do sistema de cotas. Assim, por ora, não vislumbro qualquer razão para a medida cautelar de suspensão do registro (matrícula) dos alunos que foram aprovados no último vestibular da UnB ou para qualquer interferência no andamento dos trabalhos na universidade.”
Vale dizer: o ministro apenas entendeu que não havia urgência a justificar a concessão de liminar — sem contar os transtornos que ela poderia causar num processo de seleção já concluído. Mas isso nada tem a ver com o mérito da ação. E o Supremo terá de se defrontar com essa questão. E é aqui que as coisas ficam muito interessantes.
Um grande texto
A decisão de Gilmar Mendes (íntegra aqui) é o primeiro grande texto do Judiciário a respaldar as teses que combatem o racialismo. Se ele vai dizer “sim” ou “não” à política de cotas quando o mérito for julgado, isso não sei. O que sei é que produziu uma argumentação luminosa contra as teorias que pretendem dividir os brasileiros segundo a cor da pele. Destaco alguns trechos (em azul).
Nunca é demais esclarecer que a ciência contemporânea, por meio de pesquisas genéticas, comprovou a inexistência de “raças” humanas. Os estudos do genoma humano comprovam a existência de uma única espécie dividida em bilhões de indivíduos únicos.
A noção de “raça”, que insiste em dividir e classificar os seres humanos em “categorias”, resulta de um processo político-social que, ao longo da história, originou o racismo, a discriminação e o preconceito segregacionista.
(…) é preciso enfatizar que, enquanto em muitos países o preconceito sempre foi uma questão étnica, no Brasil o problema vem associado a outros vários fatores, dentre os quais sobressai a posição ou o status cultural, social e econômico do indivíduo. Como já escrevia nos idos da década de 40 do século passado Caio Prado Júnior, célebre historiador brasileiro, “a classificação étnica do indivíduo se faz no Brasil muito mais pela sua posição social; e a raça, pelo menos nas classes superiores, é mais função daquela posição que dos caracteres somáticos.
Por mais que se questione a existência de uma “Democracia Racial” no Brasil, é fato que a sociedade brasileira vivenciou um processo de miscigenação singular. Nesse sentido, elucida Carlos Lessa que “O Brasil não tem cor. Tem todo um mosaico de combinações possíveis” (LESSA, Carlos. “O Brasil não é bicolor”, In: FRY, Peter e outros (org.) Divisões Perigosas: Políticas raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 123).
Quando vocês tiverem um tempinho, sugiro que leiam a íntegra do texto de Mendes. Deixo-os com uma série de indagações que ele faz. Para mim, são mais respostas do que perguntas. E elogio uma vez mais a coragem do Democratas de recorrer à Justiça contra uma medida flagrantemente inconstitucional. Vamos ver que decisão tomará o Supremo quando o mérito da questão for debatido.
Assim, somos levados a acreditar que a exclusão no acesso às universidades públicas é determinada pela condição financeira. Nesse ponto, parece não haver distinção entre “brancos” e “negros”, mas entre ricos e pobres. Como apontam alguns estudos, os pobres no Brasil têm todas as “cores” de pele. Dessa forma, não podemos deixar de nos perguntar quais serão as conseqüências das políticas de cotas raciais para a diminuição do preconceito. Será justo, aqui, tratar de forma desigual pessoas que se encontram em situações iguais, apenas em razão de suas características fenotípicas? E que medidas ajudarão na inclusão daqueles que não se autoclassificam como “negros”?
Com a ampla adoção de programas de cotas raciais, como ficará, do ponto de vista do direito à igualdade, a situação do “branco” pobre? A adoção do critério da renda não seria mais adequada para a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil? Por outro lado, até que ponto podemos realmente afirmar que a discriminação pode ser reduzida a um fenômeno meramente econômico? Podemos questionar, ainda, até que ponto a existência de uma dívida histórica em relação a determinado segmento social justificaria o tratamento desigual.
Acreditem! Existe Brasil além de Sarney, Renan, Collor e Lula.
Deixo como recomendação para futuros argumentos à respeito, leiam a íntegra da decisão do Ministro Gilmar Mendes AQUI.
Um comentário:
Muito bom, implementar politica de cotas raciais é alimentar ressentimentos e discriminação. Não sou contra a política de cotas sociais, sobretudo nas universidade federais, mas cotas raciais é o fim da picada.
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