quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Crise política e reforma


O Estado de S. Paulo - 26/08/2009
"A democracia é duas coisas:
uma maquinaria, ou seja, uma estrutura constitucional, e um
universo de maquinistas que põe a máquina a funcionar... Minha visão é de que a democracia é ainda uma maquinaria decente que está amplamente
transtornada e maltratada por seus atuais operadores"
Sartori

Diante de mais uma conjuntura de incerteza, um espectro volta a nos rondar: revisão constitucional. Pode tomar várias formas, uma reforma tópica, parcial ou total, e responder a circunstâncias diversas. O universo de propositores varia e inclui parlamentares, juristas, OAB. É essa fluidez que torna difícil ao analista político decifrar sua razão de ser - diferentemente de Hamlet, que desde a primeira aparição soube a que vinha o espectro de seu pai.

Com a crise no Senado, o espectro volta a assombrar, sob nova roupagem: com propostas de um Congresso unicameral, na prática, a eliminação do Senado. Não chegam a pautar a agenda pública, mas obrigam a refletir sobre nossos impulsos revisionistas. Por duas razões. Uma é a singularidade da conjuntura atual, que evidencia de forma dramática as falhas do nosso sistema de representação. Combinaram-se as evidências de um Senado de costas para a opinião pública e a dominância, agora escancarada, do Executivo sobre o Legislativo. Sob esse prisma, sobram perguntas. Como remediar o grave déficit no sistema de contrapesos, indispensável para moderar o poder avassalador do Executivo - e da desenvoltura do presidente, fundada em altos índices de popularidade? Como superar o autismo de um Senado indiferente ao eleitorado, de cujos votos, em princípio, depende? O tema da reforma política deve ressurgir. Mas qual? Ou quais? Há outra razão para refletir sobre essas questões. Quando analisados em perspectiva regional, nossos impulsos revisionistas são uma versão soft do tipo de constitucionalismo vigente na América Latina. Num registro mais otimista, portanto, cabe perguntar: por que o Brasil sai bem na foto (embora o Chile saia melhor)? Convém saber quais são os anticorpos que nos protegem para estimulá-los e contra-arrestar os ataques oportunistas.

Descarto a hipótese de que nossa imunidade dependa de uma postura governamental coerente. A ambiguidade da nossa política externa reflete a de seus artífices em relação à questão democrática. A tarefa preliminar é identificar o animal novo que se tornou parte da paisagem regional e que caracterizo como "constitucionalismo iliberal". Sim, sei bem que soa como uma contradição nos termos - e é mesmo. Pois, do ângulo da teoria democrática e na experiência das democracias consolidadas, as Constituições se ancoram em dois pressupostos: devem capacitar o governo a governar e, portanto, a controlar os governados; mas o poder de governar é outorgado com base na premissa de que só é democrático o governo que "se controla a si mesmo". O sistema de contrapesos integrado pelos Poderes Legislativo e Judiciário é a característica definidora do constitucionalismo. Bem... mais lá do que cá.

O constitucionalismo iliberal é antes de tudo um híbrido. Seu ponto de partida é que o acesso ao poder se faz por meio de eleições - um critério de legitimação política de cepa liberal. A partir daí o modelo original sofre uma decantação.
Destaco apenas três filtros:
1) O suposto de que uma Constituição é uma caixa de ferramentas que deve garantir antes de tudo a capacidade de governar - a governabilidade -, daí a prevalência do Executivo em detrimento dos contrapesos que o limitam.
2) A maquinaria pode ser atualizada e "modernizada" por seus operadores, quando portadores de "fins superiores". A operação mágica, aqui, consiste em pressupor que toda uma sociedade quer marchar para o mesmo fim. Isso permite eliminar do modelo original uma âncora fundamental, pois nele as Constituições só definem como as normas devem ser criadas para atingir determinados fins.
3) As preferências majoritárias da população, medidas em votos ou em popularidade, são idealizadas e erigidas à categoria de "vontade do povo soberano".

Chama a atenção a cilada autoritária inscrita nessa concepção de democracia, cuja lógica conduz seus operadores a congelar a vida política pela incessante escritura de Constituições. Por um lado, as preferências do eleitorado e da opinião pública variam, pois dependem das condições de concorrência eleitoral. Onde ela existe, a vontade concreta do "povo soberano" é volátil e pode estar dividida. Por outro, tanto a "capacidade de governar" quanto a definição de "fins superiores" encontram outro limite incômodo: a participação política. Quando livre, ela expõe a diversidade dos fins que existem e se contrapõem em toda sociedade complexa. Assim, para continuar erigindo um eleitorado concreto em "vontade do povo soberano" os operadores terão de domesticar os dois motores básicos da democracia: concorrência eleitoral e participação política. A solução é a constitucionalização da vida política (outra contradição nos termos). Seu complemento natural é a desqualificação do terceiro elemento perturbador, a liberdade de imprensa, pois só ela pode atenuar um problema inerente à democracia de massa: quanto o eleitorado e a opinião pública sabem dos assuntos de interesse público?

Quais são os anticorpos? A concorrência eleitoral é irreversível. O sistema de Justiça atua como um contrapeso. A imprensa é competitiva em nível nacional (mas não local). O setor privado dinâmico, diversificado, é um estabilizador, pois é avesso aos excessos de experimentação política. Os riscos?

Um Executivo avassalador, a desqualificação da imprensa e o ativismo do presidente, que maximiza os déficits no sistema de representação. Outro risco, dramático: a domesticação de um dos motores da democracia, a participação política, pela incorporação dos interesses organizados e dos movimentos sociais às estruturas do Estado.


PS - Os grifos são meus e os deixo como comentário inerente a este texto que nos faz refletir sobre certos aspectos, principalmente do outro lado¹³ !

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